Protetores que combatem o mal, mesmo quando a população ao redor não consegue ver. Essa pode ser uma descrição dos arcanjos – seres espirituais citados na Bíblia e que povoam o imaginário popular.
Também poderia ser uma referência aos investigadores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN), que combatem crimes sexuais praticados na internet contra crianças e adolescentes.
Não por acaso, o projeto criado em 2021 dentro da instituição foi denominado Arcanjos. Somente nos últimos dois anos, a equipe responsável deflagrou 13 operações, cumpriu 18 mandados de busca e prendeu oito pessoas em flagrante.
A equipe do MP potiguar também colaborou em operações realizadas em outros estados do país.
No projeto, promotores e servidores do MP utilizam diversas tecnologias para rastrear e combater as atividades de “predadores” na internet. Cerca de 15 pessoas atuam no processo.
Segundo a promotora Tatianne Sabrine, coordenadora de Investigações Especiais do Gaeco, o projeto Arcanjos surgiu quando o grupo percebeu um aumento nas demandas relacionadas a crimes como produção, armazenamento e distribuição de materiais pornográficos envolvendo crianças e adolescentes.
“As primeiras demandas começaram a chegar em 2017 e os números se tornaram cada vez mais expressivos, então percebemos que havia a necessidade de padronizar essas investigações, criar um modelo de combate que a gente conseguisse aplicar a todos os casos que chegassem”, lembra.
As investigações não se limitam às ações de criminosos no Rio Grande do Norte.
“O Arcanjos é uma metodologia, um conjunto de procedimentos e ferramentas que é aplicado dentro de todas as fases da investigação”, explica a promotora.
As diversas ferramentas tecnológicas são usadas desde a fase pré-operação, quando começam as apurações a partir do recebimento da denúncia, até o pós-operação, com o encerramento do inquérito e a denúncia.
Parte dessas tecnologias, inclusive, é cedida pela HSI (Homeland Security Investigations) – agência de inteligência norte-americana que auxilia forças policiais de vários países no combate aos crimes sexuais contra crianças e adolescentes.
As armas dos investigadores, porém, são mantidas em sigilo. E tem explicação para isso: de acordo com eles, a exposição dessas ferramentas pode dar aos criminosos informações de como as agências de combate atuam na repressão ao crime.
A promotora explica que, entre as ferramentas, existem as que auxiliam os investigadores a identificarem pessoas vinculadas a materiais criminosos na internet. Outras ajudam a equipe do Ministério Público a localizar imagens e vídeos específicos nos equipamentos dos suspeitos no momento da busca e apreensão, por exemplo.
“Os investigadores precisam ter ótimo conhecimento em forense computacional, ciberinvestigação e cibersegurança. A equipe tem essa formação. O Ministério Público foi formando essas pessoas para que pudessem fazer esse trabalho com excelência”, afirma a promotora.
Perfis dos predadores e das vítimas
Um dos casos emblemáticos, que aconteceu antes da organização do projeto, foi a prisão de um homem de 27 anos em Natal, em 2019. Segundo o Ministério Público, ele criava perfis falsos nas redes sociais, conseguia atrair as vítimas e persuadia as crianças a enviarem imagens e vídeos íntimos.
Com esse material em mãos, ele passava a chantagear as vítimas e as atraía para encontros, onde cometia estupros e outros abusos – alguns em prédios abandonados ou terrenos baldios.
De acordo com os investigadores, o homem era aparentemente acima de suspeitas: trabalhador com futuro profissional promissor e frequentador de igreja.
“O que mais me impressionou nessa apuração é que foram mais de 30 abusos físicos e algo em torno de 20 abusos online de um único predador. Foi uma coisa absurda, porque era uma pessoa acima de qualquer suspeita que conseguiu fazer um estrago muito grande”, relata um dos servidores ligados à investigação, que pediu para não ser identificado.
Segundo a promotora Tatianne Sabrine, os perfis dos criminosos são variados, mas a maioria são homens entre 20 e 40 anos. Ela afirma que ultimamente também foram identificados suspeitos mais jovens, e que os abusos cometidos por adolescentes têm se tornado cada vez mais comuns.
Os perfis das vítimas também são diversos. Entre os materiais criminosos encontrados na internet, há imagens de abusos de recém-nascidos a adolescentes.
Um dos servidores que participa da análise dos milhares de vídeos e fotos de abuso sexual de crianças e adolescentes relata: “É impossível descrever o que se vê no material apreendido. A mente chega a travar diante de tanta maldade”.
A promotora ainda destaca que a quantidade de material ilegal apreendido e que está sendo analisado pelo MP é vasta. “São milhares de vídeos e fotos de crianças e adolescentes com cenas chocantes capazes de estarrecer profissionais que atuam há anos nas investigações”, diz a coordenadora.
Como agem os predadores
Em geral, as vítimas são procuradas pelos bandidos em redes sociais e em jogos online. Os predadores usam perfis falsos para se aproximar das crianças e ganhar a confiança delas.
“Eles se passam por outras crianças ou por pessoas famosas. Eles mapeiam aquelas crianças e identificam as vulnerabilidades, as fraquezas os desejos delas. Então eles criam uma persona para se aproximar daquelas crianças”, explica a promotora.
“Existe todo um trabalho de ganho de confiança e afastamento dessas crianças da sua rede de proteção. E quando isso está estabelecido, fortalecido e testado, ele começa a fazer as investidas de caráter sexual”, pontua.
Ainda de acordo com Tatianne Sabrine, dependendo da localização geográfica e dos objetivos dos criminosos (alguns querem extorquir financeiramente), eles podem apenas solicitar que as crianças enviem imagens, ou tentar marcar encontros.
Para a promotora, a principal recomendação para pais e responsáveis é estar próximo dos filhos
“A coisa mais importante que os pais podem fazer é manter uma conexão muito forte com seus filhos para que, quando essas situações se apresentarem, tomarem ciência daquilo. Também é importante conhecer a internet. Você só pode se proteger daquilo que conhece”, recomenda.
Reconhecimento
Os resultados do Arcanjos já geram reconhecimento nacional. O projeto é finalista de pelo menos dois prêmios nacionais. Um deles é o Prêmio CNMP Edição 2024, promovido pelo Conselho Nacional do Ministério Público, cujo resultado final será divulgado no dia 27 de novembro. Os programas finalistas foram selecionados dentre 651 iniciativas dos Ministérios Públicos espalhados pelo país.
G1/RN
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