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A Lei de Segurança Nacional, norma de conteúdo autoritário usada durante o regime militar (1964-1985) para enquadrar opositores e tratar divergências políticas como crime, vem sendo reabilitada pelo governo federal e pelo sistema de Justiça para tratar conflitos políticos e ameaças à democracia e ao Estado de direito, trazendo mais incerteza à já conflagrada esfera pública brasileira.

Seu texto, cuja versão mais recente é de 1983, não foi revogado expressamente pelo Congresso. E o STF (Supremo Tribunal Federal), apesar de ter sido provocado mais de uma vez, nunca analisou quais itens da norma são ou não compatíveis com a Constituição de 1988.

Exemplos de uso recente da Lei de Segurança Nacional avolumam-se. Na 5ª feira (18.mar), 5 manifestantes que abriram uma faixa com os dizeres “Bolsonaro genocida” na frente do Palácio do Planalto foram detidos pela Polícia Militar, com base nessa norma. O delegado da Polícia Federal responsável concluiu que eles não haviam cometido nenhum crime e os liberou em seguida – com exceção de um dos manifestantes, que havia sido condenado em 2014 a 7 meses de prisão em regime semiaberto por desacato à autoridade e seguiu detido.

Na 5ª feira, a Justiça Federal suspendeu uma investigação em curso contra o youtuber Felipe Neto que apurava se ele havia violado a Lei de Segurança Nacional por ter chamado Jair Bolsonaro de “genocida”, termo usado por opositores do presidente para se referir à sua condução do país durante a pandemia. O procedimento havia sido aberto pela Polícia Civil do Rio de Janeiro a partir de queixa feita pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente.

O ministro da Justiça, André Mendonça, também já solicitou a abertura de inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional contra diversas pessoas que criticaram Bolsonaro, como o advogado Marcelo Feller, o escritor Ruy Castro e os jornalistas Ricardo Noblat e Hélio Schwartsman. Ao fazer isso, Mendonça segue uma orientação geral de Bolsonaro, um defensor do regime militar que celebra a ditadura. Em novembro de 2019, após o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sair da prisão e fazer um discurso crítico ao governo, Bolsonaro reagiu afirmando: “Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada.”

USO MAIS FREQUENTE

Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), vê com preocupação os pedidos de abertura de inquéritos com base na lei, em especial os feitos pelo ministro da Justiça. Segundo ele, a norma tem sido usada pelo presidente para tentar reprimir opositores.

“Isso é gravíssimo. O ministro da Justiça se transformou em um chefe de polícia política, e a Lei de Segurança Nacional tem sido instrumentalizada para calar opositores desse governo autocrático. Isso tem contribuído muito para a ruína da convivência democrática no Brasil”, diz.

Os casos citados não são isolados. Em 2019 e 2020, os dois primeiros anos do governo Bolsonaro, a Polícia Federal abriu 76 procedimentos para apurar supostas violações à Lei de Segurança Nacional, 285% a mais do que em 2015 e 2016, segundo levantamento divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Por outro lado, o uso da norma não se restringe a tentativas de calar críticos do presidente. O ministro do STF Alexandre de Moraes baseou-se nela para mandar prender o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), após ele fazer diversas ameaças aos ministros do Supremo – ordem depois confirmada pelo plenário da Corte. Silveira foi autorizado a ir para prisão domiciliar no último domingo (14.mar), usando tornozeleira eletrônica.

No início de março, o apresentador Danilo Gentili também se tornou alvo de queixa-crime da Procuradoria Parlamentar da Câmara dos Deputados, que afirma que ele teria infringido a Lei de Segurança Nacional ao escrever em uma mensagem no Twitter: “Eu só acreditaria que esse país tem jeito se a população entrasse agora na câmara e socasse todo deputado que está nesse momento discutindo PEC de imunidade parlamentar (sic)”.

Os casos envolvendo os críticos de Bolsonaro e o do deputado Silveira são distintos e revelam usos contrapostos da mesma lei, que contém “entulhos” da época da ditadura mas também “dispositivos razoáveis” que poderiam ser compatibilizados com a Constituição, afirma Renan Quinalha, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e especialista em justiça de transição.

“Ainda que seja a versão mais light dessa norma, pois havia outras Leis de Segurança Nacional e decretos do final da década de 1960, ela foi feita num contexto de transição [para a democracia], no qual ainda havia controle dos militares sobre a agenda política e o governo. Mas há dispositivos razoáveis [na lei], que poderiam ser recepcionados pela Constituição. O grande problema é que o STF ainda não fez essa avaliação, como fez em relação à Lei de Imprensa, por exemplo”, diz Quinalha.

HERANÇA MAL RESOLVIDA

Janaína Penalva, professora de direito constitucional da UnB (Universidade de Brasília), afirma que a Lei de Segurança Nacional entrou em desuso logo após a promulgação da Constituição de 1988, mas depois voltou a aparecer em indiciamentos contra movimentos sociais, especialmente ligados à reforma agrária e de esquerda. De lá para cá, o uso foi se banalizando.

“Enquanto na década de 90 e início dos anos 2000 a lei era usada contra membros de associações e coletivos progressistas, à esquerda do espectro político e ligados à questão da reforma agrária, nos últimos anos o alvo são atuações políticas mais individuais. A aplicação da lei varia conforme a crítica se organiza. É uma vigilância que se adapta ao perfil do vigiado ou da vigiada”, diz.

Já houve diversas tentativas de revogar a LSN por meio do Congresso, sem sucesso. Em 1991, o então deputado Hélio Bicudo, morto em 2018, propôs revogar a norma e incluir, no Código Penal, crimes contra o Estado democrático de direito. Em 2002, o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, enviou uma proposta ao Congresso para revogar a lei e abandonar o uso da terminologia “segurança nacional”, típica da ditadura.

Em 2014, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade recomendou revogar a norma, que segundo o colegiado refletia “as concepções doutrinárias que prevaleceram no período de 1964 a 1985”. Atualmente, há cerca de 3 dezenas de propostas legislativas para alterar ou revogar a lei.

No Supremo, há pelo menos duas ações pedindo que a Corte analise a constitucionalidade da lei, uma do PSB e outra do PTB. O relator de ambas é o ministro Gilmar Mendes. Em 8 de março, ele solicitou que o Palácio do Planalto e o Congresso se manifestem sobre as ações, e aguarda as respostas para dar andamento ao processo.

Quinalha, da Unifesp, avalia que será difícil o STF deixar de analisar o tema neste momento. “Com um governo autoritário como o de Bolsonaro mobilizando essa lei, ela volta à centralidade do debate político e jurídico, e o STF terá que enfrentar. Tomara que atualize os dispositivos, para que possamos ter uma legislação de defesa do Estado de direito e da democracia, que é o uso que está sendo feito em relação ao Daniel Silveira. E que a lei não reproduza mais dispositivos de exceção, como os que o governo Bolsonaro está mobilizando”, diz.

Deutsche Welle


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