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*Por José Paulo Kupfer

Qual a semelhança entre as calçadas das cidades brasileiras e a tentativa de compra de vacinas por empresas do setor privado, com o aval oficial do governo brasileiro? A resposta é que ambas têm na origem a cultura do “cada um por si”.

A história desse movimento inusitado no mundo – nenhum outro país ou grupo de empresas tentou até agora negociar a aquisição de doses de vacina no modo privado – ainda está muito mal contada, com fios soltos para todos os lados. Mas, mesmo assim e mesmo tendo sido frustrada pelo laboratório fabricante, lembra que, no Brasil, até em questões sanitárias e humanitárias, há quem, pela força do dinheiro ou do poder social, ache que pode mais do que os outros.

Se, juntamente com as vacinas vieram as furadas de fila – a ponto de o Ministério Público ter suspendido a vacinação em Manaus, onde ocorre uma crise humanitária de grande porte, com colapso de hospitais, falta de oxigênio e mortes em proporções excepcionais -, quem deveria se surpreender com a posição do Brasil entre os campeões mundiais de desigualdades sociais e extrema pobreza?

Pode não parecer, mas tem tudo a ver furar fila da vacinação e exibir os piores índices de distribuição de renda, assim como uma baixíssima mobilidade social. São anomalias resultantes de uma mesma e nefasta cultura do “cada um por si”.

É fácil tropeçar em exemplos cotidianos do “cada um por si”. Os edifícios com comportas de prisões para entrada e saída de pessoas, os muros cada vez mais altos das casas e as guaritas com esquemas reforçados de segurança nos condomínios são um outro lado da moeda do faroeste social brasileiro.

A solução individual, obviamente ineficiente, não evita, ao contrário, potencializa a insegurança e a violência. Contíguas às áreas muradas, favelas se multiplicam, como um câncer que destrói o tecido social .

Quem compara as calçadas das cidades mundo afora com as das cidades brasileiras leva um choque e morre de vergonha. Onde lá fora são espaços de circulação de pessoas, aqui são inóspitos terrenos intransitáveis para seres humanos. Cadeirantes, carrinhos de bebê, pessoas com dificuldade de locomoção e pedestres em geral são expulsos para o asfalto, tal as irregularidades dos calçamentos, feitas exclusivamente para atender aos objetivos específicos e exclusivos dos proprietários dos imóveis, sem qualquer sentido de integração ambiental.

Outras manifestações do “cada um por si” afloram no espaço urbano, no qual a apropriação privada das coisas públicas se impõe sem cerimônia. O que são, se não isso, os cones que reservam os espaços das ruas para estacionamento privado de veículos, em frente a bares, restaurantes, e estabelecimentos comerciais variados?

Além da doença do “cada um por si”, não está clara a real motivação que levou ao pastelão da inédita tentativa de compra privada de vacinas por um consórcio de empresas brasileiras cujos nomes não são oficialmente conhecidos, à exceção do diretor jurídico da siderúrgica Gerdau. O grupo recebeu aval do governo Bolsonaro para a aquisição de 33 milhões de doses da vacina que o laboratório AstraZeneca desenvolveu com a Universidade de Oxford.

O aval oficial foi dado por meio de uma carta, endereçada ao laboratório, a um fundo de investimento que detém participação no capital do fabricante, e a uma firma exportadora. É assinada, unilateralmente, por três representantes qualificados do governo, inclusive o secretário executivo do ministério da Saúde.

A carta estabelece condições para a transação abortada no nascedouro. As doses adquiridas não poderiam ser comercializadas e deveriam ser aplicadas sem custos em funcionários das empresas do consórcio. Há controvérsias se a destinação, como doação, de metade do lote ao SUS seria compulsória ou apenas uma recomendação. De todo modo, as 16,5 milhões de doses que seriam doadas ao SUS, não imunizariam mais de 0,5% da população a ser vacinada.

Em sua página pessoal na internet, o economista Thomas Conti, professor do Insper e especialista em ciência de dados, levantou uma série de questões, num esforço para juntar algumas das pontas soltas dessa história em que as contas não fecham. Conti suspeita que possa ter havido uma “pedalada da vacina”, com o governo terceirizando o direito ao lote pretendido pelo grupo privado. Esse direito de acesso teria sido garantido ao governo, partir de um acordo firmado com a AstraZeneca, em julho do ano passado, para o fornecimento, ainda que sem data certa para entrega, de 100 milhões de doses (ver em http://bit.ly/39u9IFG).

Se é difícil entender as intenções da tentativa de aquisição privada das doses, as razões para imunizar funcionários de empresas antes dos grupos prioritários e à margem dos planos de vacinação da população em geral também não se mantêm de pé. O objetivo aparentemente mais óbvio, o de vacinar funcionários para que as empresas não sofressem interrupções ou paralisações em suas linhas, tão sem noção, só pode ser visto como consequência da cultura do “cada um por si”. Ocorre que, no caso específico de uma pandemia como a da covid-19, as coisas não funcionam assim.

Sem falar nas inescapáveis questões éticas e morais, a vacinação de parte limitada da população, numa situação de escassez de imunizantes, não garante o funcionamento regular e sem interrupções da cadeia de produção em que a empresa com empregados imunizados se encontraria. Se as linhas próprias estiverem a salvo, os fornecedores de matérias primas e suprimentos não estarão protegidos, da mesma maneira que continuarão expostas as pessoas envolvidas na distribuição e comercialização das mercadorias ou serviços.

É o mesmo raciocínio que invalida a ideia de que a vacinação privada ajudaria a desafogar o programa público de imunização. Enquanto houver escassez de doses, furar a fila, deixando para depois os grupos de risco, aqueles mais vulneráveis a formas graves da doença, é contribuir, isto sim, para manter a pressão sobre os sistemas de saúde, aumentando o risco de colapso hospitalar, o número de mortos e, no fim do roteiro, os lockdowns forçados ou voluntários.

A verdade é que a pandemia de covid-19 está ensinando, a duras penas, que, com ela, o “cada um por si” não salva ninguém. A salvação só virá de políticas públicas, aplicadas com senso de atendimento do interesse coletivo.

*José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.

Poder 360


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