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Por Isabela Cruz, do Nexo 

A Câmara dos Deputados aprovou o pacote anticrime no dia 4 de dezembro, mas impôs diversas mudanças à proposta original do ministro da Justiça, Sergio Moro. O projeto foi apresentado em fevereiro de 2019 e trazia temas da plataforma de campanha do presidente Jair Bolsonaro, como o chamado excludente de ilicitude, que ampliaria as hipóteses em que os agentes de segurança não são responsabilizados criminalmente por matar ou ferir gravemente alguém.

Em setembro, no grupo de trabalho instituído na Câmara para analisar projeto, o pacote anticrime já tinha perdido algumas de suas principais propostas. Na votação em sessão plenária, em dezembro, o governo não conseguiu retomar os pontos derrubados pelo grupo de trabalho, nem derrubar emendas feitas por partidos da oposição, como a que cria a figura do juiz de garantias no sistema processual criminal.

Aprovado pela Câmara, o projeto está bastante diferente de seu texto original. Ainda assim, continua predominantemente caracterizado por aumentos de pena e endurecimento de procedimentos, apesar de impor alguns freios a agentes de segurança e a juízes e promotores.

Alguns deputados da oposição que votaram a favor do projeto alterado, como Marcelo Freixo (PSOL-RJ), justificaram o voto com o argumento da falta de opção:

“Nós conseguimos desarmar a bomba penal, tirar as coisas mais importantes, outras coisas ruins ficaram. E conseguimos incluir coisas boas, como o juiz de garantia e a regulamentação da delação premiada. Isso significa que o projeto ficou bom? Não” (Marcelo Freixo - Deputado Federal (PSOL-RJ)

Os principais pontos do pacote aprovado na Câmara

PENAS MAIS DURAS

O tempo máximo de cumprimento de pena de prisão, que hoje é de 30 anos, passará a ser de 40 anos caso o texto seja aprovado no Senado. Também aumentarão as penas de diversos crimes, como difamação com o uso de redes sociais, comércio e porte ilegal de arma de fogo, concussão (quando um agente público exige vantagem indevida para realizar suas funções), roubo com arma e violento e homicídio com arma de fogo de uso restrito ou proibido. Além disso, novos crimes passaram a ser considerados hediondos (quando o condenado não pode receber anistia, graça ou indulto e deve começar a cumprir a pena em regime fechado).

ARMAS

Deixa de ser hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de uso restrito.

PROGRESSÃO DE REGIME MAIS DIFÍCIL

O tempo de cumprimento de pena para que possa haver progressão de regime aumentou para diversos tipos de crime, chegando a 70% nos casos de reincidência em crime hediondo com morte da vítima (crime para o qual não haverá liberdade condicional).

SEM SAIDINHA

Condenados por crimes hediondos com resultado em morte não terão direito a sair temporariamente da prisão em datas especiais.

GRAVAÇÃO DE ADVOGADOS

As conversas entre advogados e presos que estiverem sob o Regime Disciplinar Diferenciado, em presídio de segurança máxima, poderão ser gravadas. Para isso, será necessária autorização judicial. Os defensores da medida argumentam que o monitoramento protege o próprio advogado contra ameaças de presos de alta periculosidade. Os críticos afirmam que se trata de violação ao direito de defesa.

TRANSAÇÃO PENAL

O acusado poderá ter sua pena substituída pela obrigação de reparar os danos causados à vítima ou de prestar serviços comunitários, se aceitar confessar o crime sem passar por um processo judicial regular. Para que o acordo com o Ministério Público possa ser realizado, é necessário que o crime em discussão não envolva violência e seja punível com prisão menor que quatro anos.

JUIZ DE GARANTIAS

O processo criminal passará a contar com dois juízes. O primeiro (juiz de garantias) será responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal (fase pré-processual), enquanto o segundo cuidará da fase processual, na qual a sentença é proferida.

DELAÇÃO PREMIADA

Entre outras mudanças quanto à delação premiada, o projeto garante que o réu delatado terá a oportunidade de manifestar-se após a manifestação do réu que o delatou. A medida obedece à recente decisão do STF que anulou duas sentenças da Lava Jato porque delatores e delatados haviam apresentado suas alegações finais ao mesmo tempo.

WHISTLEBLOWING NO SETOR PÚBLICO

O denunciante (whistleblower) de crimes cometidos contra a administração pública, ou de quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público, contará com sistema de proteção, como preservação de sua identidade e garantias de estabilidade funcional contra retaliações. Além disso, ele poderá receber até 5% do valor do produto do crime, se as informações disponibilizadas resultarem em recuperação do bem.

BANCO NACIONAL DE PERFIS BALÍSTICOS

O projeto prevê a criação de uma rede integrada, a ser gerida pela unidade oficial de perícia criminal, para cadastramento de armas de fogo e características de munições relacionadas a crimes, a fim de subsidiar investigações. A formação e a gestão do banco serão regulamentadas pelo Poder Executivo federal.

O que pensam especialistas

O Nexo fez cinco perguntas a três especialistas para entender qual é o perfil do projeto aprovado, quais são suas inflexões em relação a políticas de governos passados e o que esperar do futuro em termos de segurança pública, bem como o que ainda falta ser feito na política criminal brasileira.

- Carlos Eduardo Adriano Japiassú, professor titular de direito penal da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal

- Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé

- Dina Alves, advogada e coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Qual é o perfil do pacote aprovado, em termos de política criminal? As alterações ao texto original aprovadas pelos deputados foram capazes de descaracterizar a proposta original do governo?

CARLOS EDUARDO ADRIANO JAPIASSÚ: Continua sendo um projeto repressivo. O pacote aprovado tem algumas inovações, mas no geral continua sendo uma série de medidas discutidas há muito tempo, para tornar o sistema mais duro.

Acho que é um imenso exagero falar que o projeto original do governo ficou desidratado depois das mudanças realizadas pela Câmara. Os dispositivos que caíram realmente não faziam sentido. A proposta de mais hipóteses de excludente de ilicitude para agentes de segurança do que para o restante da população contraria o bom senso. O agente de segurança pública é um profissional treinado para atuar em situações extremas, justamente de quem se espera mais frieza e racionalidade em uma situação de perigo. Nesse caso em particular, o Congresso agiu bem.

Melina Risso:  No geral, o pacote traz uma retórica de endurecimento. No entanto, não são medidas efetivas para o combate ao crime. Aumento de pena é uma medida inócua, pois o Brasil não consegue sequer investigar e condenar pessoas que cometeram os crimes cujas penas estão sendo aumentadas. O Brasil tem muito o que avançar quanto ao índice de esclarecimento de homicídios, para só então pensar nos efeitos do aumento de pena.

Por outro lado, dado o momento atual da política brasileira, a retirada de pontos como o da excludente de ilicitude para agentes de segurança deve ser comemorada. Sabemos que, na segurança pública, a mera possibilidade de aprovação de uma medida já é capaz de afetar o comportamento dos agentes de segurança, especialmente em um contexto no qual o policial já não costuma ser responsabilizado.

DINA ALVES - O pacote é extremamente punitivista e funciona sob uma lógica encarceradora. Mudanças ocorreram por pressão do grupo de trabalho instaurado na Câmara, de parlamentares da esquerda e de diversos setores representativos de segmentos sociais, mas eu não acho que exista motivo para comemoração.

Como falar que a aprovação do pacote foi para “contenção de danos”, como alguns da própria esquerda estão falando, em um país que tem a terceira maior população carcerária do mundo? A vitória foi da política bolsonarista de recrudescimento penal, com mudanças profundas na política de execução penal.

Uma das emendas feitas pela Câmara ao texto original do projeto institui a figura do juiz de garantias ao sistema processual penal brasileiro. Essa mudança é positiva?

CARLOS EDUARDO ADRIANO JAPIASSÚ: A inclusão dessa figura no sistema processual penal é acertada, porque o juiz que participa da investigação realmente pode ficar contaminado para depois julgar o caso. Isso não produz um Judiciário menos punitivo. Apenas ajuda na questão da imparcialidade. Um juiz imparcial não será menos ou mais punitivo.

E é saudável para a democracia que os projetos vindos do Executivo sejam emendados no Congresso e percam o perfil único. Ter uma cara definida para uma política criminal é algo muito característico de regimes autoritários, nos quais o Executivo decide tudo.

MELINA RISSO: O juiz de garantias foi um avanço. É a maneira de garantir um sistema acusatório, e não inquisitorial. É uma medida importante para caminharmos para um sistema de Justiça, senão justo, pelo menos um pouco mais neutro e independente.

DINA ALVES: A instituição do juiz de garantias deve ser celebrada, mas não é capaz de equilibrar um pacote que traz uma série de questões muito graves.

Caso o pacote seja aprovado pelo Senado, que efeitos na segurança pública podemos esperar?

CARLOS EDUARDO ADRIANO JAPIASSÚ: O Brasil não dará conta de prender mais gente em ritmo ainda mais acelerado. O Judiciário terá de fazer gambiarras, como ocorreu em Minas, com a criação de um “regime semiaberto domiciliar”. Não necessariamente o regime semiaberto envolve a saída do cárcere, mas não havia mais vagas.

Nos últimos 25 anos, a população carcerária brasileira foi a que mais cresceu. Em 1994, o Brasil não tinha 100 mil presos. Hoje, tem praticamente 800 mil. Nenhum país no planeta teve essa velocidade de aumento de população carcerária. É impossível que o Estado dê conta desse crescimento de 5%, 10% ao ano. Hoje existe um deficit de quase 400 mil vagas, e uma penitenciária para 500 presos custa entre R$ 30 e 35 milhões.

MELINA RISSO: Não há dados suficientes para prevermos quais serão os efeitos das mudanças trazidas pelo pacote, como o endurecimento do cumprimento das penas. Sabemos o que está na lei, mas precisamos entender como se dá efetivamente a execução penal. A progressão, por exemplo, é possível, mas não é automática, exigindo um pedido do advogado e uma decisão do juiz. Chegamos a questionar isso quando o pacote anticrime foi apresentado ao Congresso.

DINA ALVES: A realidade não vai mudar. Se houver algum tipo de mudança, será para pior. Não há relação entre aumentar o encarceramento e diminuir a criminalidade. Esse tipo de política pública é apenas um projeto de controle social e de extermínio da população negra, pobre e periférica. E o racismo é o principal fio condutor desse sistema. A criminalidade não diminuiu com quase 800 mil pessoas encarceradas.

O que o pacote anticrime trouxe de novo para a política criminal brasileira?

CARLOS EDUARDO ADRIANO JAPIASSÚ: A aprovação de um projeto repressivo vem de uma longa tendência brasileira de leis securitárias, como eu costumo chamar. Praticamente todo governo apresenta um pacote para combater o crime. É esta resposta que o Brasil tem dado para o problema da segurança pública de uma população traumatizada pelo crime violento: reformas penais para tornar o sistema mais severo.

Desde a Constituição de 1988, o Brasil já aprovou muitas reformas que tornam o sistema mais duro, como a Lei dos Crimes Hediondos e suas expansões e a Lei de Organizações Criminosas. O sistema foi se tornando mais duro. Isto é, de modo geral, o pacote anticrime repete o que já vinha sendo feito.

MELINA RISSO: O Brasil, historicamente, não costuma debater os temas de segurança pública do ponto de vista técnico-científico sobre o que as evidências mostram. Mas podemos elencar algumas diferenças de um governo para outro.

No governo Fernando Henrique, foi a primeira vez que o tema da segurança pública entrou no governo federal como uma agenda, com a criação de um fundo e de uma secretaria nacionais de segurança pública. Depois, o governo Lula aprovou o Estatuto do Desarmamento, importante para o controle de armas, e desenvolveu uma retórica de investimento tanto em prevenção quanto em qualificação da repressão. O governo Dilma desmontou a política federal de segurança pública, mas o governo Temer instituiu o Sistema Único de Segurança Pública e o Plano Nacional de Segurança Pública, organizando a infraestrutura necessária para o desenvolvimento de uma política nacional.

No governo atual, a estratégia de ampliação da participação da sociedade na construção de uma política nacional de segurança foi abandonada. O governo volta para uma estratégia pontual de segurança, com o investimento em cinco cidades, não olha para as evidências que mostram o que funciona e ainda emite mensagens conflitantes. O ministro quer reduzir o crime organizado, mas ataca o mecanismo de controle de armas, facilitando que as armas cheguem às mãos das facções.

DINA ALVES: No governo anterior vimos a instituição do sistema de custódia, apesar de todas as suas dificuldades de implantação. Mesmo assim, também vimos políticas bélicas no governo do PT, principalmente em relação ao encarceramento de mulheres negras.

O pacote gerou muitos debates, mas o que de importante ficou fora do projeto aprovado?

CARLOS EDUARDO ADRIANO JAPIASSÚ: O que traz resultados mais automáticos para o combate à criminalidade no curto prazo é a própria atuação da polícia e do Judiciário. Isso envolve muito mais do que medidas que sirvam somente para prender pessoas. Envolve investigação, policiamento comunitário presente e policiais com formação contínua e recursos de trabalho. O policial não pode ter jornada exaustiva, nem ter que tirar dinheiro do próprio bolso para pagar a gasolina da viatura.

As pesquisas do mundo indicam que não há relação automática entre aumento do encarceramento e diminuição da taxa de criminalidade. Da mesma forma, não há relação automática entre melhora dos níveis econômicos e diminuição da taxa de criminalidade (ainda que seja fundamental investir em condições sociais simplesmente porque é certo, porque é justo). No entanto, o Brasil insiste apenas nessas duas estratégias para combater o crime no curto prazo. O debate precisa incluir outras estratégias.

MELINA RISSO: Alguns pontos da proposta original caíram, como a questão do excludente de ilicitude, mas continuam na agenda do governo, previstas em outros projetos de lei. Propostas como a ampliação das hipóteses de excludente de ilicitude para agentes de segurança que estiverem em operações de garantia da lei e da ordem e as insistências do governo sobre o Estatuto do Desarmamento nos preocupam.

Também precisamos fazer uma discussão séria sobre a Lei de Drogas, que é o que tem afetado bastante o sistema penal. O projeto não altera questões centrais da eficiência do sistema, como a eficiência das investigações policiais.

DINA ALVES: A proposta desse governo é bélica. A esquerda e os profissionais da segurança pública que têm de pensar em um caminho para uma agenda de segurança pública numa democracia sólida e verdadeiramente humana. Precisamos pensar em debates mais profundos, que considerem questões de raça, gênero e classe.

Precisamos pensar, urgentemente, em políticas de desencarceramento. Quase metade da população encarcerada é de presos provisórios. É uma violação gravíssima da presunção de inocência, o que não condiz com uma democracia sólida.

Nexo Jornal


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